terça-feira, 27 de julho de 2021

Clécia Oliveira e a Fio Cultural Produções

 Por: Diego El Khouri

Imersa na múltiplas linguagens da arte, Clécia Oliveira desenha seu caminho: uma trajetória de dedicação e entrega, poesia  e estudos, inspiração e transpiração. Escritora, produtora, jornalista, revisora, em  seu trabalho transparece a imagem de uma pessoa que está realmente afim de colaborar de forma positiva na arte e na cultura do país. Ano passado a entrevistei no canal do youtube da Editora Merda na Mão https://www.youtube.com/watch?v=fNU7HKFVwVw no programa Deu Merda, edição número 24 (hoje o programa já ultrapassou o número 60). Clécia é uma agitadora cultural e uma escritora intensa. Idealizadora do Fio Cultural Produções e tantos outros projetos. Então vamos ler/ouvir o que essa mineira que hoje reside no Rio de Janeiro tem a dizer.



1) Como se iniciou   seu   gosto pela poesia e quais  escritores te influenciaram nesse princípio?

O meu gosto pela poesia começou na infância. Eu me lembro de ter contato logo que aprendi a ler. Eu achava bonito e tentava escrever algo parecido, principalmente pensando nas rimas...rs. Uma história que me lembro é que, quando eu tinha 8 anos, fizemos um livro na 2ª série primária. Foi marcante porque, além de ter vários trechos meus na narrativa, ao final, foram selecionados poemas para compor o livro, inclusive, meus. Desde então, continuei a escrever, até mesmo durante as aulas que eu não estava muito interessada.

Sobre influências, acho difícil nomear porque tive contato com muitos autores que me chamaram a atenção, como Manuel Bandeira, Drummond, Mário Quintana, Fernando Pessoa, Machado de Assis, os beatniks, Edgar A. Poe e por aí vai. Quando jovem, passei a ter mais contato com autoras e me encantei com Cecília Meireles e Cora Coralina, por exemplo. E não paro de conhecer obras e autorxs interessantes. No meu caso, acho que as influências ficam um pouco no subconsciente. 


2) O que te motiva  a criar?

Acho que é por não aguentar que as ideias fiquem somente na minha cabeça. Acabo transformando, materializando em algo, que pode ser na literatura e em outras artes e produções. É uma forma de desabafo, crítica, de expressar sentimentos, ideias, observações, de mostrar análises sobre algo do cotidiano ou uma viagem, fantasia, etc.



3) Fale  sobre a   Fio Cultural  Produções e os eventos artísticos que promove através dela.

A Fio Cultural atua com base no tripé Cultura-Educação-Comunicação, não deixando de manter a Poesia como fio condutor. Realiza diversas atividades culturais e artísticas, produções editoriais, audiovisuais e outros projetos. Também oferece serviços nas áreas de letras, comunicação e produção. Um dos projetos próprios mais marcantes da Fio Cultural é o Sarau FioMultiCultural, que completa 6 anos em 2021. É um evento multilinguagens onde se encontram manifestações e apresentações em várias linguagens e formatos. Assim como outras atividades da Fio, busca promover reflexões, encontros e trocas entre artes, artistas, produtores, comunicadores, educadores...




4)  Como anda a cena artística e cultural no Rio de Janeiro?

Sempre foi muito efervescente, mas, durante a pandemia, está sofrendo drasticamente, assim como em várias regiões. No entanto, vejo muitos agentes culturais/artistas se reinventando com a tecnologia e promovendo atividades on-line, também continuam produzindo suas obras e encontrando outros meios de divulgá-las e de serem remunerados. No entanto, muitos estão passando grandes dificuldades. E está longe de ser o que era a cena artística e cultural. De fato, pelo menos, o movimento continua e a arte e os artistas continuam tentando exercer seus papéis e mostrar seus valores e o quanto são resistentes. 

 

5) Em Julho  de   2019 você colaborou na  construção do I  Encontro de Saraus Rio na OFF  FLIP 2019, em Paraty. Fale sobre esta iniciativa.

A ideia veio do desejo de promover encontros, trocas, interlocuções. Há saraus muito importantes e diversificados no Rio de Janeiro, que reúnem artistas que atuam com estilos, técnicas, temas, enfim, com características distintas, o que torna a produção contemporânea muito rica e diversificada na cidad


e. São muitas vozes. A OFFflip, que é um evento paralelo à Flip e que ocorre na mesma época deste evento internacional, é uma forma de conectar artistas e apresentar ao público os que não têm tanta oportunidade de estar na grande mídia e nos grandes eventos. E a proposta do Encontro de Saraus veio para agregar muito a este evento paralelo de resistência. 


6)  Fale sobre  o  Sarau D4 - Arte Erótica.

O D4 nasceu de uma conversa entre amigos que produziam obras eróticas e já haviam realizado eventos com o tema. No caso, eu, Vinni Corrêa e Ricardo Mendes. Fizemos o D4, em 2019, e tivemos uma adesão bastante significativa. Foi sucesso de público e, entre os participantes, tivemos diversidade de gêneros, de linguagens, etc. Foi um evento muito rico, com qualidade artística e que também trouxe reflexões sobre censura,  mulher x erotismo, liberdade, moralidade, respeito. A repercussão foi interessante.

Poucos meses depois, eu e outros dois amigos, Paulo Kajal e Sérgio Gramático Jr., buscamos meios de realizar um sarau erótico com título Dark Room Poético. Também foi multilinguagens. A diferença é que, de fato, teve um “dark room”, mas com toda segurança e respeito. Em janeiro de 2021, a Fio Cultural lançou o livro/coletânea “Fio Arte Erótica”, em homenagem aos dois saraus, e realizou live/sarau de lançamento.



7) Através da UFRJ você  trabalhou no Museu Nacional. O museu era um reconhecido centro de pesquisa em história natural  e antropológica  na América Latina.  Em 2  de setembro  de 2018, logo após o encerramento  do  horário  de   visitação,  um incêndio de grandes proporções atingiu os três andares do prédio do Museu, destruindo uma quantidade imensa de peças. O que representa um acidente desses para a  memória  nacional?

Na época do incêndio, eu estava gravando um documentário sobre o Museu, via Fórum de Ciência e Cultura da UFRJ (FCC), onde eu trabalhava. O Museu é vinculado ao Fórum. Além disso, eu cursava uma Pós-graduação em Acessibilidade Cultural para Pessoas com Deficiências e os grupos de trabalho da Pós estavam preparando projetos para acessibilizar espaços do Museu. Infelizmente, fomos interrompidos, mas passamos a realizar os trabalhos e assistir às aulas no Museu Histórico Nacional. E, em anos anteriores, trabalhei em produções coletivas de unidades da UFRJ que envolviam o Museu.

O Museu Nacional ainda é um reconhecido centro de pesquisa e está se reerguendo. Um acidente desses mostra o quanto a cultura, educação, ciência e instituições públicas não são assistidas adequadamente. Há perdas irrecuperáveis e irreparáveis nesse caso. Muita memória se foi mesmo. Porém, muitos pesquisadores ativos estão procurando recuperar informações e prosseguir, como possível, com as pesquisas. E há, também, planejamento de reiniciar as atividades culturais, principalmente após o fim da pandemia. Não é possível ter peças perdidas de volta, mas sim conteúdos e aquisição de novas peças por meio de doações, além das resgatadas e das que não estavam no palácio na ocasião do incêndio. E, daqui para frente, espero que os trabalhos continuem e que o Museu Nacional seja reconstruído, mesmo que demore. E observo que isto está em andamento.



8) Em tempos de pandemia, como a arte deve se colocar para ocupar espaços  sem sair de casa e sem  cair no  mais do mesmo?

A palavra é Reinvenção. Já estou vendo artistas continuarem suas produções em suas casas, em seus ateliês, estúdios, etc. A forma de apresentar as produções é que muda. E muitos estão buscando as maneiras possíveis no momento e com adesão do público que necessita consumir arte. O diferencial também é o ponto que cada artista toca e como o faz. Estamos vivendo no mesmo caos, mas é possível extrair muitas coisas diferentes disso tudo. E o melhor: é um momento de bastante reflexão, autoconhecimento pessoal e artístico e, ainda, de desafio em manter a arte e a cultura em movimento. 



9) A arte  vai sobreviver ao autoritarismo?

Claro! Tempos de autoritarismo vêm de longa data. E arte não só sobreviveu como torna as situações extremas objeto das próprias produções. A arte continua resistindo e mostrando seu papel.


10) Uma frase.

Não seja mais um comum num mundo de mortos.


9) Dica de leitura(s)

Leiam os poetas contemporâneos! Há grandes artistas e obras que precisam ser conhecidas e consumidas. 



10) Um poema de  sua   autoria


Alecrim


Um doce sabor nos lábios me recorreu

Ao lembrar-me de dias espectrais 

Entre beijos, bebidas, abraços e comidas

Música farta e cantos dos amigos.

Dançávamos sem olhar para os passos

Qualquer tropeço era engraçado

Escrevíamos poesia sem tantos pêsames

E nos abraçávamos todos os meses.


Dormir é descansar para acordar para a vida 

Que continua...

É abraçar o próprio travesseiro e ficar mais esperto na rua.

Os dias de verão serão onde quisermos

Nas salas ou nas praias criadas por nós. 


E como o teatro não para!

Textos correm as vontades de expressão e interação

E se lançam em todos os lugares

Enquanto nos apresentamos pelos celulares.


O pé de alecrim está crescendo

E diz a cada dia que segue o oposto 

Do mundo que está morrendo.

A indignação veio sem autorização

Mas a humanidade não se recolherá 

Ainda veremos a vida florir com novos valores

E seremos cheiro de alecrim

Quando as ruas puderem nos recepcionar

E se encherem de verdade (s).


***Clécia Oliveira – Rio de Janeiro, RJ

É poeta, produtora cultural/audiovisual/editorial, jornalista e revisora. Coordena e produz as atividades da Fio Cultural Produções. Alguns dos projetos que atua: Sarau FioMultiCultural (6 anos), FioZines, Cine Fio, produção de livros e documentários. Atualmente, em 2021, está em andamento o projeto “Eu, na Pandemia” – livro multilinguagens, com vários autores, que será o primeiro passo para eventos relacionados ao tema.



terça-feira, 7 de abril de 2020

O OLHAR ARTÍSTICO DA MAYTE GUIMARÃES

Por: Diego El Khouri 

Conheci Mayte através  das conexões artísticas.  Logo depois soube que ela é sobrinha  do mais respeitado e engajado artista plástico goiano vivo: o Amaury Menezes.  Porém, Mayte criou dentro do seu universo artístico uma linguagem própria.  Abaixo  o bate-papo com essa artista das artes visuais e da literatura:



*Para conhecer a obra da artista eis o  link do seu site:

Instagram: 


1- Você  é filha de artista e sobrinha do Amaury Menezes, um dos mais respeitados artistas plásticos  de Goiás. De que forma eles foram importantes para que você mergulhasse nessa linguagem artística e desenvolvesse seu próprio trabalho?

De fato, eles foram os que mais me influenciaram a querer ser artista. Meu pai porque cresci o vendo trabalhar em seu ateliê, onde hoje é meu local de fazer arte, o Maytelier. Já meu tio-avô Amaury, passei a infância e parte da adolescência convivendo muito com ele, às vezes ia com meu pai em seu ateliê, ia às vernissages, sempre vendo sua arte e de amigos dele. De certa forma ele me influenciou na paixão pela aquarela, na qual é um mestre. 
Nos primórdios do meu aprendizado em desenho, um amigo que é artista plástico, Guilherme Eugênio, um dia disse que meu traço parece o do meu pai. De fato sempre fui admiradora do traço dele, por ser solto, livre, como procuro fazer o meu. Então creio que fui muito influenciada pela arte dos dois, mas claro, sempre respeitando meu próprio traço e minhas características.



2- Quais outros artistas te influenciaram nos primórdios de seu fascínio pela pintura? 

Um grande amigo artista plástico, Murah Lemos; artistas locais contemporâneos do meu tio Amaury, Saida Cunha, Roos, DJ Oliveira, outros artistas locais como G. Fogaça, Guilherme Eugênio, Mateus Dutra, Gustavo Rizério, meu professor de desenho e pintura Waldemar Lima, Simone Taya, Paulo Duarte. E claro, os clássicos como Da Vinci, Van Gogh, Renoir, Modigliani, Klimt, Kandinsky, Miró, Frida, dentre outros que tive oportunidade de conhecer em museus na Europa, Buenos Aires, Nova Iorque e Miami. 




3- O livro "Quarto de despejo: diário de uma favelada", escrito pela Carolina Maria de Jesus inspirou sua série "Cinderela Negra". De que forma essa obra da Carolina te impactou e por que uma série inspirada nessa autora?

Sempre fui fascinada pela história de vida das pessoas. Um dia me deparei com a sinopse do livro da Carolina na minha timeline do facebook, fiquei muito intessada. Consegui emprestado e já nas primeiras páginas fiquei estarrecida com a forma com que ela contava as dificuldades porque passara, e com o que ela relatava. Também vi que o tema é extremamente atual, a miséria vivida por milhões de pessoas, não só no Brasil, mas no mundo. Foi bem na época em que planejava produzir uma série pra minha primeira exposição em Goiânia. Daí surgiu a ideia de fazer a série baseada no livro, por ser um tema atual e por ter mexido comigo internamente, no sentido de olhar mais pro próximo e imaginar o que será que ele vive, por quais dificuldades ele passa, em que posso ajudá-lo, mesmo não tendo muito.



4- O que te motiva a criar?

O processo criativo pra mim é algo muito pessoal. Ele acontece sempre que sinto dor ou amor. Seja dor pelas mazelas mundanas, seja dor por processos internos, seja dor de amor, ou mesmo amor, não só o romântico, mas o amor cósmico, universal. Essa é minha mola propulsora pra criar. Também a vontade de mostrar pro mundo a minha visão sobre o que sinto, o que vejo, o (pouco) que compreendo do universo.



5- Como você vê a cena cultural e artística de Goiás?

Pergunta polêmica, risos. Considerando que consumo arte e cultura desde a infância, por estar em contato com meu tio Amaury, artista renomado em Goiás e no Brasil, desde criança, por ser filha de artista, e depois por gostar de arte e continuar a buscar por ela até hoje, vejo a cena cultural e artística goiana forte no sentido de ter muito artista bom fazendo arte e produzindo cultura, mas desvalorizada. Tanto no âmbito governamental quanto no âmbito pessoal, ou seja, das pessoas desvalorizarem os artistas locais, dando preferência ao que é de fora. Quando estudamos história da arte, não se fala muito em história da arte local, regional, mas sim a mundial. Então sinto que falta incentivo até mesmo das escolas, do governo em resgatar e mostrar nossas raízes culturais verdadeiras, que não são só a europeia, mas principalmente a indígena brasileira, a africana, a sul americana. Sendo assim, acho que valorizaremos ainda mais o que temos de bom e belo em Goiás. Por isso valorizo tanto meus amigos e amigas artistas, antes de valorizar estrangeiros. Eles me enriquecem muito.



6- Você também escreve poemas e prosas. Quais autores te influenciaram na literatura? Fale sobre sua escrita. 

Costumo dizer que sou escritora por atrevimento, pois não é minha graduação. Porém sempre gostei de escrever. Desde criança escrevo diários, cartas pra família. Sempre foi minha forma de externar o que sinto, pois sou tímida - era mais na infância -, e não lidava bem em demonstrar sentimentos oralmente, daí encontrei na escrita a maneira de colocar tudo pra fora, de forma poética. Minha avó paterna era poetisa, Teresa Godoy, que foi quem me inspirou a enveredar pelos caminhos da poesia. O primeiro poema que tenho registrado foi em 1991 ou 92, com uns nove ou dez anos. Os autores que me influenciaram e influenciam não são apenas da poesia, mas autores clássicos como Machado de Assis, Rubem Braga, Florbela Espanca, Fernando Pessoa, Victor Hugo, dentro outros. Autores locais também como minha avó Teresa Godoy, minha tia-avó Maria Rosa Fleury, Augusta Faro, Yeda Schmaltz, Leda Selma, Maria Lúcia Félix Bufáiçal, Adalberto de Queiroz. 




7- Como produzir arte em tempos tão sombrios?

  "Só a arte salva." Justamente por serem tempos sombrios é que devemos produzir arte, porque é através dela que amenizamos a dor causada pelos tempos sombrios. A arte nos afaga a alma, nos abraça e acaricia, fazendo-nos reviver em dias tão doloridos, diante de tanta crueldade vista mundo afora. A arte faz-nos enxergar o que não conseguimos ver às vezes por causa da dor. Por isso faço arte, pra me trazer de volta à vida colorida e bonita que existe no universo, mesmo com tanta feiura, desamor. Ainda que a arte seja vista como algo suplérfluo e desnecessário por muitos, continuo porque sei que ela e o amor que sinto por ela é que me farão passar por esse momento em que vivemos. 

8- Uma frase.

O amor e a arte salvam.



9- Próximos  passos.

Estou produzindo uma série nova chamada "Aflorou", que pretendo expor ainda esse ano. Tentando não sair do centro por causa dessa quarentena e esse vírus que está fazendo um estrago no mundo. Como bióloga às vezes perco a esperança, mas como artista, ela sempre ressurge das cinzas, como a fênix que sou. Planejando publicar meu primeiro livro solo de poesia também esse ano. 

10- Deixa um recado. Fale o que quiser.

Pessoas lindas e artistas do mundo, uni-vos contra os poderosos asquerosos que querem a todo custo nos escravizar e destruir a humanidade. Mas antes de mais nada, cada um deve mergulhar dentro de si mesmo, libertar-se de todas amarras impostas desde sempre e assim acabar com toda desigualdade, desamor, escravidão. 




sábado, 4 de janeiro de 2020

O POETA PAULO MANOEL RAMOS PEREIRA

Por: Diego El Khouri

"De que maneira escrever enquanto chovem bombas? "



Paulo Manoel Ramos Pereira é um poeta das ruas e livros, saraus e esquinas. Um bardo engajado e com um vasto conhecimento de arte e literatura. Sua paixão pela palavra transparece em seus versos e a forma como conduz seus passos tem a estética perspicaz e intensa da poesia. 
Rimbaud já dizia: A poesia não voltará a ritmar a ação; ela passará a antecipá-la. 

Adentrem nesse universo interessante da legítima poesia-corajosa-contemporânea-goiana:


01 - Quando você teve consciência de que a poesia fazia parte de sua vida e passou a elaborar seus primeiros versos?

A literatura, de modo geral, anteriormente ao desenvolvimento de uma consciência de vitalidade, sempre foi o motor distintivo e instintivo da minha existência. Lembro-me de diversas ocasiões, ainda na tenra infância ou na ingênua adolescência, em que a curiosidade quase fabril (me encanta do chão de fábrica da criatividade) em relação a um livro, a uma história, moldaram, apontaram sobremaneira aquilo que viria pela frente. Isso, naturalmente, apenas percebe-se em um momento posterior à conscientização do tom vital da literatura e da poesia em nossa vida. Pois bem, creio que deu-se no final do período adolescente, em que deixei a afinidade com os românticos de lado para conhecer os modernos, os contemporâneos, e ali garatujei os primeiros versos. Evidentemente, muito ruins.

2 - Quais autores fizeram sua cabeça nos primórdios de sua jornada no labiríntico  caminho das artes?

Como afirmei, por afinidades sentimentalistas, os românticos me fascinavam naquele início de pensamento poético. Ainda me fascinam, mas de outra maneira, que não merece ser exposta por ora. Mas, o que fez a minha cabeça mesmo, ou melhor, a desfez, ao primeiro contato mais apaixonado com os modernos, foi Manuel Bandeira. Sou grato a ele.

3 - Como você vê a cena poética goiana contemporânea?

Para mim, vai do modo que sempre esteve: não respira por aparelhos porque jamais descuida de ocupações paliativas ou emergenciais louváveis. Vejo com boníssimos olhos algumas iniciativas da prefeitura, que recentemente lançou mais de uma centena de autores de uma só vez, e com muito, muito carinho aquelas de particulares. Não é um momento interessante para mostrar-se apaixonado pelas artes, ocupado em fazê-las coletivamente eficientes, o que constitui com efeito uma “cena”. Mas, sim, temos esses loucos e loucas. Estão surgindo novas livrarias, novas editoras (e publicações) e novos eventos de arte pela cidade de Goiânia, o que me faz bastante feliz.

4 - Você participa do grupo de poesias intitulado Goiânia Clandestina. Grupo esse que já publicou uma antologia poética no ano de 2017 (assinou a revisão e edição  do livro ao lado do Mazinho Souza). Como anda esse grupo no momento e qual a contribuição mais importante que você apontaria para a cultura local?

É forçoso reconhecer que, em 2019, fizemos balanço do ano anterior e elaboramos propostas para o seguinte. Também é necessário perceber que não trata-se de um grupo imenso, ainda mais quando a barra pesa ou a coisa fica séria. De qualquer modo, capitaneado pelo Mazinho, ocorreu, em 2018, o Festival de Poesia Goiânia Clandestina, cuja extensão abarcou cinco meses, cinco eventos diferentes, inúmeros convidados, atividades e apresentações, de muito sucesso. Também fizemos a seletiva de autores para o segundo volume da Antologia Clandestina, que será lançada em 2020. São contribuições muito efetivas para a cultura local. Possuímos algumas novidades verdadeiramente editoriais, ainda em planejamento, para o ano que segue. Assim vai (para a frente, creio) o grupo.

* Arte da Capa: Gabi Rodrigues

5 - O que te motiva a criar? Mudou algo no processo criativo ao longo do tempo?

O impulso vitalício pela expressão reorganizada das palavras em via, naturalmente, de dizer aquilo que acho importante ser dito, de maneira própria. Muita coisa mudou em relação ao meu processo criativo no caminho de Tróia a Ítaca, não que cogite a finitude dele. Acredito que aprendi a racionalizar a forma (cujo significado já é racionalizante) e desentender a expectativa expressiva. Evidentemente, essas coisas vão mudando, você vai mudando, como quis Heráclito, certo? Falar muito desse tema incorre em revelar seus segredos aos outros ou, tanto melhor, a si mesmo.

6 - Você acredita no fim do livro impresso? O que é preciso ser feito para a juventude  passar a ter mais contato e prazer no ato da leitura?

De forma alguma. Sou bastante gutemberguiano e cultuo a palavra impressa, ao que acho uma perda de tempo a discussão. Para o contato da juventude ser maior e melhor com a leitura, é necessário não submetê-la, a partir da imposição de deveres, mas encantá-la, por meio da possibilidade de livre conhecimento do mundo a partir do aprendizado das páginas. É claro, são palavras gerais e demasiado apaixonadas para uma problemática minuciosíssima, que remete às mazelas socioculturais mais basais da nossa sociedade. O que pode ser feito, creio, começa em Paulo Freire e outros grandes nomes que tanto dedicaram-se à educação e ao Brasil, essas causas quase perdidas, fronts cruéis.

7 - Atravessamos um período complicado. Tentativas de censuras a todo o momento e uma ameaça constante de um autoritarismo extremamente agressivo em toda a América Latina. De que forma produzir literatura em um momento tão terrível no mundo?

De que maneira escrever enquanto chovem bombas? Sem a ilusão de que a batalha está aí para ser vencida, mas portando a certeza de encontrar-se na trincheira certa, ao lado das pessoas certas. Então, cumprindo, para mim, um dever moral, pessoal de resistência àquilo reacionário. São tempos verdadeiramente sombrios, que inspiram apreensão, descompasso, mas a literatura jamais desapareceu, não desaparecerá agora, e sempre serviu de espelho de sua época. À historiografia, à literatura, não passará incólume nosso tempo, por maneiras que não posso profetizar. Devo esclarecer que não penso nesses termos teleologicamente, jamais, nem na supermoralização das artes.

8 - Um autor(a) que você recomendaria.

Recomendo os clássicos, gregos e romanos, porque temos muito a aprender. Alguém disse que o futuro da poesia talvez esteja em Homero. Não é uma inverdade, em alguns aspectos. Em um nome, Lucrécio.

9 - Uma frase.

“Portanto, se a tua mão ou o teu pé te escandalizar, corta-o, e atira-o para longe de ti.” Mateus 18:8.

10 - Para finalizar essa entrevista uma poesia de sua autoria.

Aí vai um soneto, ainda sem título, mas prontíssimo.

*

E portanto administro
o peito que é feito
de cinzas (em respeito
às brasas do sinistro

passado). Ali registro
a vergonha, os efeitos
da infâmia, os defeitos
de Cristo. Os administro

porque a rigor eu quero
os suplícios todos
para mim. (Tenho esmero,

uma cama de lodo,
e o verso bem sincero:
não sou parte do todo?)


terça-feira, 21 de maio de 2019

OS QUADRINHOS POÉTICO-FILOSÓFICOS DO GAZY ANDRAUS

Por: Diego El Khouri

Venho entrevistando a galera das artes  há 10 anos. A primeira foi com o poeta Glauco Mattoso, e que publiquei no blog Molho Livre ( http://molholivre.blogspot.com/ ) em 31 de Outubro de 2010 e depois nesse blog aqui também. E nunca mais parei. Existe muitos motivos para estar nesse encalço. A cultura alternativa tem realmente, em boa parte dos casos, essa necessidade de interação, coletividade e troca de experiências.  Conhecer outras formas de pensar enriquece o nosso próprio trabalho. E o público precisa  conhecer quem são esses artistas e principalmente as artes e reflexões que eles/elas propõe. Esse blog, como já disse algumas vezes, visa devassar a cultura, ampliar nosso olhar, fortalecer a cena artística e criar um painel de produção contemporânea. Dessa vez a entrevista é com o professor universitário, quadrinhista e pesquisador em histórias em quadrinhos, Gazy Andraus. Com ascendência libanesa,  Gazy nasceu em Ituiutaba (MG) (cidade de outro grande quadrinhista brasileiro, o Edgar Franco) no dia 11 de Janeiro de 1967. Sua trajetória marca um período importante da arte sequencial brasileira, as ditas HQs  poético-filosóficos, que modificaram a forma de pensar e fazer quadrinhos no Brasil. Abaixo segue o papo com esse importante autor do underground nacional. 





1) De que forma se tornou quadrinhista e como foi o processo até se tornar pesquisador da área?

Na infância, como toda a criança, o desenho em todas as instâncias chamava-me a atenção (em revistas, gibis, desenhos animados etc). Os dinossauros me atraíam e eu os desenhava quando fui criança, incessantemente. As ilustrações de dinossauros, igualmente, me eram apaixonantes, junto do que seria a vegetação pré-histórica representada na época dos seres antediluvianos. Enquanto isso, assistia os desenhos animados e séries fantásticas (“Corrida Maluca”, “Ultra-Seven”, “Zorro”), mas os gibis foram os que mais me envolveram, pelos quadrinhos, cenas, personagens e variedades de títulos e estilos (dos desenhos, principalmente). Inicialmente no humor e depois, a partir de meus 12 e 13 anos, apaixonei-me pelos de super-heróis graças aos desenhos naturalistas (realistas) com o fantasioso da ficção mixado à realidade recriada nos heróis. Desta fase em diante, eu queria poder criar HQs de super-heróis como as dos profissionais que eu via. Depois, na faculdade de artes, aprendi técnicas artísticas e de plasticidade que mesclei à linguagem quadrinhística, enquanto conhecia os fanzines, onde principiava a publicar meus quadrinhos iniciais. A seguir, percebi a necessidade das pesquisas aos quadrinhos para lhes dar o devido valor aos olhos de quem não os reconhecia, o que me levou ao mestrado e doutorado (e agora ao pós-doutoramento sobre os fanzines, em específico).

2) Você  produziu  inúmeros  fanzines e HQs na qual eram  chamados de "quadrinhos poéticos - filosóficos.  O que seria  essa vertente da HQ?

Em meados da década de 1980 conheci os fanzines e principiei a participar deles. Fui um período muito fértil, ainda sem computadores pessoais e internet. Tínhamos uma inflação galopante no Brasil, gibis em bancas e álbuns de HQs nas livrarias que passaram a ter uma publicação cada vez com mais títulos diferentes e respaldados com reportagens jornalísticas, como nunca houvera antes no Brasil. Com isto, os quadrinhos europeus vieram com mais freqüência e passei a conhecê-los melhor. Então, em meio às HQs amadoras (e também profissionais, com HQs de Mozart Couto e Shimamoto) que eu via nos zines e os quadrinhos de super-heróis (que eu já não me contentava mais em desenhar e emular), percebi grandes diferenças naquelas artes das dos europeus como Moebius, Caza e Druillett. O álbum “O Homem é bom?” de Moebius me deixou atônito! Era totalmente diferente e seus desenhos fluídos e as histórias (se por assim chamadas) eram poéticas! Na verdade, para explicar melhor como se deu esta modificação comigo, vou contar melhor o fato. Na época (meados e fins dos anos 80), com a inflação perto dos 80%, restava um exemplar deste álbum do Moebius à mostra numa livraria em Santos/SP e todas as vezes que eu passava, não dava muita atenção. Como a livraria parou de remarcar o preço do exemplar, após umas semanas, seu valor ficou igual ao de um simples gibizinho da Ed. Abril, com seus constantes aumentos, que também acometiam todos os outros produtos no Brasil. Então, como eu estava já meio cansado de ler HQs de heróis com “crises em infinitas terras”, resolvi encarar o álbum de Moebius, ainda meio reticente...mas quando passei a lê-lo, entendi a magnanimidade e diferencial de sua arte que muito me aprouve! Enquanto isso, em alguns fanzines apareciam outros autores como Caza (Phillippe Cazamayou) com sua HQ “Vento”, altamente poético-fantástico-reflexiva! Aliado a essas novas experiências de leituras minhas, estavam meus conhecimentos e experiências que estava adquirindo na faculdade de artes, cuja amálgama com os estilos de super-heróis que ainda residiam no meu arcabouço mental, retransmiti tudo à minha arte, passando, aos poucos, a criar HQs curtas com tais tônicas (mas, claro, inconscientemente de que se tornaria um estilo distinto, também simultaneamente desenvolvido por outros novos autores). O curioso foi encontrar HQs similares às minhas, tanto no estilo de desenhos, como nas temáticas fantasioso-reflexivas, das HQs de Edgar Franco (que eu não conhecia), tendo publicado num mesmo número que eu no clássico fanzine “Barata”. Conforme fomos nos tornando amigos e difundindo mais e mais nossas artes, lançamos em 1994 o zine “Irmãos Siameses”, cocriado já com a premissa de uma arte-irmã, e tendo tido suas páginas alcunhadas como “autêntica fantasia-filosófica” pelo curador da Exposição Anual de Fanzines de Ourense na Espanha. Outros autores foram despontando com estilos distintos, como Antonio Amaral, Rosemário e AlGreco. Mas, claro, antes deles e de nós, já havia o Flávio Calazans e Henry Jaepelt (este último com desenhos que lembram os europeus Moebius e Arno) cujos estilos embrionários contribuíram para a manutenção dos quadrinhos poético-reflexivos, o que só ampliou esta visão de um estilo único brasileiro influenciado, um tanto, pelo europeu. É importante ressaltar que devido aos fanzines serem de poucas páginas e tiragens reduzidas, exigia-se com que nós autores elaborássemos HQs curtas de 3 a 6 páginas, em geral, para que mais autores pudessem publicar em fanzines como “Tchê”, “Quadritos”, “Bifa”, “Barata” etc. Esta premência de nos obrigar a elaborar HQs curtas nos forçou mais ainda a sermos mais criativos e mais sucintos (ou elípticos) em nossas narrativas, culminando no estilo das HQs poéticas! Inclusive, isto resultou num pós-doutorado do saudoso Elydio dos Santos Neto, que registrou na história da HQ e nos meios acadêmicos, tal estilo.



3) Ao longo de sua carreira, no universo dos quadrinhos,  você publicou em fanzines  e revistas internacionais como o zine francês  La Bouche du Monde. Como os quadrinhos são vistos no mercado Internacional?

Em geral, tanto no fanzinato brasileiro como no mundial, é muito similar a camaradagem de faneditores que publicam HQs de autores do mundo todo para mostrar mais versatilidade e ampliar a rede mundial de trocas de idéias e expressividades artísticas (que é o propósito dos fanzines, que justamente não visando lucro, auxiliam nesta fraternidade em que não se objetiva a competição). E tudo, lembrando, antes da Internet. Mas com o advento dela, também se migrou para zines em pdfs, ou blogs (uma mescla, a meu ver, de um fanzine mixado a diário pessoal). Os quadrinhos, décadas passadas, não eram muito bem vistos no mundo todo, com certa exceção à França, mas principalmente ao Japão, cujo preconceito lá era o menor (a meu ver, porque o ideograma, por ser desenho, mantinha o mesmo valor conceitual que o quadrinho, diferentemente para nós e a letra fonética ocidental, que era tida como de maior importância, em detrimento ao desenho). Porém, tudo foi se modificando, e na atualidade, mesmo no Brasil, os quadrinhos são melhor valorizados (como os fanzines), mas graças, claro, à ampliação de pesquisas na área (contrariando a visão política atual brasileira em que se desvalorizam a pesquisa e a universidade). Assim, embora os mercados de HQs no exterior (EUA, Europa e Japão) sejam grandes, o fanzinato ainda existe como uma espécie de válvula necessária para todos aqueles que desejam se publicar e com liberdade, sem esquecer o que eu disse: com fraternidade!


4) Qual  a diferença, na produção  de material underground, antes e depois do advento da internet?

Tal qual o disco de vinil, que no Brasil foi escorraçado durante o advento dos CDs, e agora retorna, o quadrinho e principalmente o fanzine, no papel, passa e volta a ter tanto valor (ou mais) quanto o fora no passado. Com relação ao underground não penso ter havido mudança, mas em relação aos temas em geral, parece terem se ampliado, com muito mais autores e agora autoras mostrando suas artes, e os fanzines aparecendo melhor, tanto no papel, como em redes sociais (eu posto alguns fanzines meus no facebook). Mas, claro, ainda penso que no papel eles são mais apreciados, tanto pelos que os leem, como pelos que os elaboram, justamente devido à razão dos zines terem muita afinidade com o labor pelas mãos e com o material físico (papel). Outro fator que se ampliou: feiras e eventos de fanzines, alguns acoplados a eventos de HQs, como o TCAF - Toronto Comic Arts Festival, que tem um anexo para autores de fanzines e independentes e aqui no Brasil, o Ugrapress e a Feira Plana, que trazem publicações alternativas. Desta forma, se pensávamos que os zines de papel sumiriam, ao contrário, aumentaram em quantidade e alcance (muito também graças a quadrinhistas e fanzineiros que adentraram as escolas e faculdades e aplicam aos alunos os quadrinhos e zines).


5) Em 2007 você ganhou o  19º Troféu Hq Mix na categoria de "melhor tese de doutorado" por sua pesquisa  "As histórias  em quadrinhos como  informação  imagética  integrada ao ensino universitário",  defendida na Universidade de São  Paulo. O que esse prêmio  representa para o mundo acadêmico e sobretudo  no mundo das histórias  em quadrinhos?

Como respondi numa das anteriores, as pesquisas vêm aumentando gradativamente no Brasil, acerca das artes dos quadrinhos e fanzines. O pioneirismo vem das décadas de 1970 e 80, mas grassaram as pesquisas de 1990 em diante com muitos TCCs, dissertações de mestrados e teses de doutorado, ajudando, invariavelmente (aliadas às apresentações em congressos) a aumentar o arcabouço de pesquisa e divulgação da importância da 9ª Arte e dos fanzines. Minha tese veio nesta esteira, e descobri nela a justificativa-mór que daria o aval aos quadrinhos: os desenhos são lidos distintamente em nosso cérebro, como arte, impulsionando a inteligência criativa que interage com a racional (que lê fonemas e sequencializa tudo). Os quadrinhos, por mixarem desenhos, narrativas elípticas e textos fonéticos trazem este conjunto que “retroalimenta” os hemisférios cerebrais de uma maneira excepcionalmente amplificada e distinta da exclusiva obtenção cartesiana de informações. E note que o álbum teórico em quadrinhos “Desaplanar” de Nick Sousanis (que já esteve no Brasil num dos congressos de HQs da USP), fruto de sua tese de doutoramento em forma de HQ realizada nos EUA, traz esta teoria de que as histórias em quadrinhos são um estímulo diferenciado e amplificador de uma visão estreitada e tradicional, tal como minha tese trazia (só que antes da dele, e diferenciando-se em que a minha tinha um aporte baseado nas pesquisas da ciência cognitiva realizadas na época, porém sem desmerecer a de Sousanis, que é louvável e que amplifica com outras modalidades de percepção o que eu havia desenvolvido na minha pesquisa). Ou seja, minha tese realmente foi pioneira e veio antes da pesquisa norte-americana e devido ao ineditismo e alcance, teve uma premiação justa e merecida (que aliás, me pegou de surpresa), sem jactância de minha parte, pois só eu sei como sofri para, no terceiro ano da elaboração da tese, chegar a essa “equação” que resultou em meu desvendamento da importância das HQs à mente humana (e em especial como uso para a universidade), e que levou mais um quarto ano para eu melhor desenvolvê-la e finalizá-la – aos trancos e barrancos, incluindo eu lidar ao mesmo tempo com um acidente ocorrido com meu pai que havia quebrado sua perna e em paralelo eu dar assistência a ele!



6) Fale sobre o Observatório  de Histórias  em Quadrinhos da Escola de Comunicações  e Artes da Universidade  de São  Paulo na qual você  é membro.

O antigo “NPHQ – Núcleo de Pesquisa de Histórias em Quadrinhos”, que foi gerado no final da década de 1970 por pioneiros como os profs. Álvaro de Moya, Antonio Luis Cagnin, Waldomiro Vergueiro e Sonia Luyten, e na atualidade denominado de “Observatório de HQ” tem sido primordial para manter a pesquisa dos quadrinhos, em especial na ECA – USP, onde ele se baseia. Reúne pesquisadores reconhecidos, bem como estudantes de graduação e pós, amantes da arte, e de várias áreas acadêmicas (e não só de pessoas da USP, mas de outras instituições). A cada reunião mensal há uma apresentação acadêmica (de alguém que defendeu TCC, mestrado ou doutorado acerca de HQs e afins) e a continuidade de estudo de um livro teórico que aborde as histórias em quadrinhos em que um dos membros apresenta explicando um capítulo do livro estudado. Em meio a isso, houve outros projetos, como o de entrevistas com autores e pesquisadores da Nona Arte (alguns que já faleceram, como Ruy Perotti, na qual esteve presente), dentre outros projetos atuais, como o agora anual Congresso Internacional de Histórias em Quadrinhos. Portanto, um grupo essencial de pesquisa e aberto a todos, sob coordenação do professor Waldomiro Vergueiro.

7) Como andam atualmente  as produções  de HQs no Brasil e existe mercado para esse tipo de mídia?

Não consigo mais acompanhar, faz tempo! Os de super-heróis, eu parei já há anos, só adquirindo um ou outro, pois as peripécias que as editoras fazem para vender têm me irritado muito, pois descaracterizam personagens e fingem dar complexidade, muitas vezes, em roteiros que não têm profundidade. Exceções, claro, principalmente aos autores ingleses como A. Moore e G. Morrison e alguns outros poucos. Não tenho o hábito de ler mangás, pois não aprecio a estética da arte da figura estilizada humana deles (embora goste dos cenários e uso de retículas). Do europeu também vejo uma massificação e embelezamento vazios. No Brasil tem havido um aumento absurdo de títulos e autores e muitos com qualidade, mas também não tenho como acompanhar. Aprecio trabalhos autorais como os do Laudo, Edgar Franco e Henrique Magalhães e vez ou outro cai na minha mão um álbum como a HQ “Carolina”, sobre uma mulher negra que foi um dos grandes fenômenos literários do Brasil na década de 1960, mas desconhecida por nós, em geral. O álbum tem autoria de Sirlene Barbosa e João Pinheiro que chegaram a ser laureados neste ano no festival de Angoulême na França! Dos fanzines, os incentivos de Alberto Souza (o Beralto) com seus alunos do Instituto Federal Fluminense (IFF) que criam HQs e fanzines temáticos e criativos, e o fanzine “Gibilândia” de Roberto Guedes que publica histórias em quadrinhos de autores consagrados, mas inéditas no Brasil, bem como o incrível “QI” de Edgard Guimarães que se mantém excepcional com muitas informações sobre HQs e fanzines e seção de cartas enriquecedoras. Fico sempre atento para conhecer algum fanzine ou HQ alternativos de novos autores em que vejo qualidades ímpares, afora os eventos como a “Fanzinada” de Thina Curtis (homenageada recentemente com seu nome dado à nova seção Fanzinoteka da Gibiteka de Barueri). Mas o que eu gostaria de apontar é a diferença berrante entre as produções atuais e o que havia nas décadas de 1980 e 1990 onde a salvação eram os fanzines: e hoje, com os rumos valorosos atribuídos aos quadrinhos, a facilidade em se publicar e a reverência dada à nona Arte em todas as áreas, não deixam as gerações atuais saberem que tudo estava ao contrário em décadas passadas, com as HQs então desvalorizadas e até tidas como perniciosas à mente humana! É impressionante como tudo se inverteu...mas não se deve esquecer que foi graças aos autores e pesquisadores que foram desbravando e conduzindo suas obras e pesquisas de encontro com preconceitos e desconhecimentos que as áreas acadêmicas e a sociedade em geral tinham. Foi por isto, inclusive, que muitos de nós tornamo-nos pesquisadores também: para ajudar a mostrar que os quadrinhos não eram a mídia maléfica que “pintavam e desenhavam”, e pelo jeito, temos conseguido!

8) O que te motiva  a criar?

Aqui é interessante eu tentar explicar. Voltando a meu passado, lembro que o que me prendia a atenção nas leituras das HQs sempre foi o fantasioso, mas imbuído de reflexão. Na infância, como eu dissera, desenhava dinossauros sem parar, e na adolescência, HQs de heróis. Mas não me interessavam “batalhas” e sim, focos em temas de reflexão. Recordo-me de uma HQ de Jim Starlin com o personagem Motoqueiro Fantasma, em que ela trazia um embate, uma corrida na qual a Morte desafia o estranho herói, que para vencê-la em 3 etapas, precisa usar de rapidez e inteligência, salvando uma criança que a Morte coloca como prêmio e desafio (podem ver mais sobre isso em meu blog: http://classichqs.blogspot.com/2013/03/a-morte-como-premio-motoqueiro-fantasma.html), além de outras HQs, não apenas de heróis reflexivo-filosóficas que eu passei a ler no início da fase adulta, como as de Caza (e filmes de ficção científica, como “2001” e autores como Ray Bradbury e suas “Crônicas Marcianas”). Tudo isto, aliado a livros de ciência quântica e de filosofias outras (e até esotéricas) como o Tao, me motivavam a elaborar HQs poéticas com contextos reflexivo-filosóficas. Mas o fantástico tinha que existir, desde que eu gostava de desenhar monstros, dinossauros, super-seres e mundos outros (o fantástico de novo), e tudo sob audição musical, preferencialmente rock (progressivo e metal melódico). Quanto mais eu gostava das músicas, mais minha mente se comprazia em criar e entrava naturalmente noutro estado semi-alterado de percepção criativa! Assim, ao ouvir músicas, eu ia elaborando as frases e artes concatenando-as desenhadas diretamente à nanquim no papel, até acabar a “obra” - uma HQ/Arte curta em que eu assinava ao final, como uma pintura (pode-se assistir uma apresentação acadêmica minha em que mostro como se dá o processo criativo, aqui: https://www.youtube.com/watch?v=k3d_xuog7Uk). Há trabalhos meus publicados na Editora Marca de Fantasia (“Ternário M.E.N., e o livro sobre minhas obras escrito pelo Elydio dos Santos Neto: “Os quadrinhos poético-filosóficos de Gazy Andraus: 25 anos de quadrinhos e fanzinato”) e pela Ed. Criativo, um sketchbook e o álbum de HQ “Homo Eternus” vol. 1 (já está sendo preparado o vol.2).


9) Epitáfio. 

O que estaria no meu? Algo como “Assim como a criação e a arte se renovam, a vida aqui não morreu, mas transcendeu para outro rumo e plano de (re)criação!”

10. Fale  o que quiser.  Deixa o seu recado. 

Penso que as pessoas estão em níveis distintos de pensares pessoais, e por isto, para cada uma, a vida, estando numa etapa específica, permite-lhes apropriarem-se de uma verdade em que o ser humano pensa sua verdade ser igual a de todas os outros de sua espécie. Mas como os quadrinhos distintos que perfazem sequencialmente uma única história, porém de requadros desenhados com cenas em continuidade, cada “verdade” de cada pessoa (ou seja, de cada quadrinho) é fechada e real em si mesma, podendo ser distinta (como a imagem desenhada o é) da do outro humano (ou quadrinho), mas que pode e deve se completar com cada uma das “verdades” de cada um dos quadrinhos seqüenciados que aparecem na página, na história, como um todo (e que representa, cada pessoa/quadrinho, uma verdade distinta coligada à verdade de todos. Aliás, o mesmo se pode pensar dos estilos distintos de desenhistas que perfazem uma HQ: são diferentes suas “verdades” de estilos, mas válidas, todas!). Por isso, a “verdade” não é uma só e nem inteira por si mesma, já que estamos todos juntos (e separados) completando um planeta, com as variações que temos em todas as áreas. Desta feita, ninguém possui a verdade per si completa, necessitando, ainda que não saiba ou não perceba, da outra verdade (do outro) e do outro e do outro, sucessivamente, perfazendo, tal qual uma página de HQ com os quadrinhos, as verdades, unidas se coadunando e deixando um entendimento mais amplo e rico (como numa história em quadrinhos inteira). E percebermos isso é o ponto-chave importante e essencial, dirimindo preconceitos e construindo um “quadro” (uma HQ, uma revista) rico e completo. Do contrário, cada quadrinho se pensará completo como uma única HQ, mas que não demonstra as “cenas” em conjunto, falhando como um todo e se pensando suficiente (mas não o sendo, a menos que seja lida a HQ inteira). O mesmo nas nossas vidas: todos vão se completando e tecendo uma teia mais complexa e rica em simultaneidade (assim também o sendo na pesquisa, confirmando como exemplo desta metaforização explanada, a valorização dos quadrinhos, que foi finalmente desenvolvida e agora apreciada em maior escala pela área acadêmica e social, graças a cada “verdade” de cada um dos que os pesquisaram e uniram seus entendimentos, dando uma forma ampla, complexa e inteligível a que todos pudessem perceber melhor a real qualidade das histórias em quadrinhos). O mesmo se pode aplicar à vida em geral. É isto!

Abraço e grato pela entrevista, na qual pude recompor minhas idéias e atualizá-las!
Se quiserem ver sobre minhas pesquisas e artes, basta entrarem neste link: http://tesegazy.blogspot.com/. Instagram: https://www.instagram.com/gazyandraus/ e facebook: https://www.facebook.com/gazy.andraus
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Gazy, Goiânia-GO, início de maio de 2019.
Pesquisador e membro do Observatório de HQ (USP) e ASPAS - Associação dos Pesquisadores em arte Sequencial; INTERESPE-Interdisciplinaridade e Espiritualidade na Educação (PUC/SP) e Criação e Ciberarte (UFG). Autor de HQs e Fanzines de temático fantástico-filosóficas.