Conhecido como Xandu do Ratos (por frequentar o Rato Di Versos, um sarau bastante conhecido na Lapa no Rio de Janeiro), esse poeta não deixa pedra sobre pedra. Agitador cultural, performer, outsider, armado de versos e sacadas inteligentes, ele não se limita aos saraus ou eventos culturais no RJ. Sua poesia perambula entre bares, favelas, centros culturais, aonde quer que vá, levando a sua dinamite verbal ao contato imediato com o maior número de pessoas possível. Tive o prazer de conhecê-lo na segunda vez que morei no Rio de Janeiro, por volta de 2013, e aqui posto uma entrevista que ele me concedeu. A primeira que faço em 2016. "Vamu" que "vamu", cambada!!!
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1) O que te despertou para a poesia e quais eram suas influências no início?
Sim, existe isso de trajetória, e ao mesmo tempo não existe: porque a poesia vem de algum lugar secreto. Acho que a minha veio dos infartos diários da criança que um dia eu fui; acho que veio de um bailado centenário, essa dança que eu pego e espalho por precisar enviar certos recados. É nesse caldo que adiciono o resto: ver outros poetas, ler livros, viver paisagens, e dormir sonhos e pesadelos para no dia seguinte ter o que vomitar como poesia.
Mas sendo justo com a história: uma bagagem inicial foi construída nos círculos universitários e na boemia da Zona Sul fim dos 80 e início dos anos 90. São poetas que ainda hoje se agregam entorno do CEP 20.000, Fundição, Circo Voador etc.. Convivi intensamente com o grupo Boato, que tinha raiz na Faculdade Hélio Alonso-FACHA, fazia música punk e pop, com a mesma garra de botar poesia nos saraus. Dentre estes: Justo D'Ávila e André Pessôa. No Baixo Gávea, na praia de Ipanema, ou em qualquer lugar que fossem, são também nomes fortes: Chacal, Maurição Antoun, Guilherme Levi, Guilherme Guimarães (do grupo Acorda Bamba), o Michel Melamede, o Alex do estúdio Totem, através de quem conheci o Chico Sciense - uma pérola nos ouvidos. Os poetas da ECO-UFRJ, posso lembrar do Paulinho Marrufo, Esquilo, Moisés Black, Moisés White, o Joe Romano, que era tratamento aberto do Pinel. Com esses todos: foi um ponta-pé.
As trilhas sonoras aconteceram forte em mim. O Circo Voador era um bálsamo, com blues, punk, rock, jazz: as noites mágicas do Hermeto Pascoal. E nos sambas de Santa Teresa também, muito pelo Sobrenatural, que era um bar precário, turbinado pela roda de músicos da Beth Carvalho, e onde as madrugadas... Muitos improvisos na Lapa, com batuques e Hip Hop, no famoso tempo "quando não tinha nada". Ah! Essas madrugadas cheiram a poesia!
2) A sua poesia dialoga muito com o rap. Até que ponto esse estilo influência o seu trabalho e qual o som tem ouvido.
Não. Discordo. Não gosto de RAP, não faço isso. Se falar normalmente é ter influência do RAP... acho forçado. Não uso a métrica, a batida, não faço RAP. Tenho dois RAP's que fiz só pra caso de protestos políticos, e como sou poeta... RAP me cansa. Próxima pergunta.
3) Você é um assíduo frequentador dos saraus do Rio de Janeiro, como por exemplo o Pelada Poética, encontro de poesia organizado pelo ator Eduardo Tornaghi na praia do leme e principalmente o Ratos Di Versos, sarau que ocorre todas as quintas feiras na Lapa. Qual a importância desses eventos na sua produção artística e como anda a vida cultural no Rio de Janeiro?
Nunca me interessei muito por saraus, mas sempre gostei de gangues: de rua, de skate, de bebedeiras, e de poesia. Então comecei uma poesia junto dos colegas de universidade, na UERJ, muito pelo Alê Gabeira que promoveu a Rio Jam Session, na casa do teatro Tá Na Rua, na Lapa. Em 2008 ou 2009 colei com o Ratos Di Versos, que sempre foi gangue também, e por sorte habita os botecos e praças da Lapa.
Como você disse... Na Pelada Poética no Leme, ou no Corujão da Poesia... São lugares que fui e que vou, porque são lugares menos burocráticos que o CEP20MiL, por exemplo. Ganhei essa garra, primeiro, por ter que enfrentar o esvaziamento do Ratos Di Versos, que foi o fim de um ciclo de pessoas ratonas em nossa poesia - o Ratos sempre teve esse entra-e-sai. Depois, avancei por mil saraus, e isso foi mais ou menos quando nos conhecemos. Explico.
Já vinha há dez anos fazendo militância pela dança Breaking, que é o bailado do Hip Hop - pela base, nas favelas e periferias, pelas ideias de dar reforço e visibilidade a uma das artes mais esquecidas quando se fala em Hip Hop. Isso se tornou o blog ZineZeroZero, onde conto essas histórias de gangues de breaking. Então cheguei a um ponto em que escrever um livro sobre isso se tornou necessário. Mas no blog mesmo, nunca escrevi pra gente de fora, uso linguagem direta e gírias internas... Sendo que, ao tornar isso um livro, passei a considerar que eu viraria um x-9 de algo que ocorre no underground. Fiz um esforço de buscar esses dançarinos populares no momento em que são contratados pelas grandes Cias de dança, quando recebem seu cacau firme no fim do mês. É disso que estou falando: Arte Contemporânea. Passei a estudar e traduzir isso para o mais simples da linguagem em respeito ao público. Ainda não terminei, não teremos livro ainda esse ano.
Mas esse estudo foi o que tentei levar para o meio da poesia, acreditei [como um bobo] num estágio de coesão e organização dos diferentes grupos. Não tinha facebook, e quando entrava era através do Ratos, sempre com uma resposta "quente" dos poetas. Daí, no início de 2014 tentei levar uma arte contemporânea através do Ratos, visando um coletivo de poetas - o que ocorreu? nada. Não teve presença. Desiludi. Foi então que vi a necessidade de turbinar, militar, esquentar esses grupos de poesia. Mas não fiz isso direito, nunca achei que marmanjo bem criado e letrado precisasse de que um outro lhes desse a mão e taí: basta sacudir o cachê minguado da FLIP e todo um trabalho de auto valorização se esfacela. Também não bato mais nisso - deixa rolar.
Mas crescemos, vários saraus, e? O que vimos foi o efeito em adultos, que se sentiram valorizados por poderem se ver uns aos outros, fazendo crer que a propaganda basta para formar poetas. Faço propaganda sim, jogo fotos no FB certo da inveja que lhes corrói as almas. Olham o Ratos Di Versos como se fosse um grupo organizado, e quando vão lá ver... já não querem voltar: porque é sujo, é guerreiro, é sem FLIP, é sem glamour. Se é essa a importância dos saraus? Alguns veem trabalho ali, às vezes grana, a maioria quer o afago do público, e o Ratos não quer porra nenhuma: poesia num serve pra nada. Nossos encontros são uma vitrine olhos-nos-olhos, e só por isso vemos poetas bons colando ali, evoluindo com a gente, fazendo e falando poemas melhores.
O que traz evolução na poesia é escrever, mas se um sarau lhe motivar... Não será diferente da poesia que eu faço ao ver beleza em fritar dois ovos pra comer com miojo.
4) Um livro que te impressionou muito.
O livro mais importante e poético que já li foi Geografia da Fome, do geógrafo Josué de Castro. Um grande erudito, que usou uma linguagem doce pra falar do áspero, criou as bases para iniciar uma noção de ecologia, não só da "vida natural" mas humana, global, e... Sua posição política sempre esteve entre um embate pesado, sua crença de que o avanço tecnológico não receberá o nome de cultura enquanto for pautado no genocídio. Aprendi com ele: cultura só existe se for pela vida. A 1ª vez que ouvi desse autor foi na música do Chico Science - "Ô, Josué! Nunca vi tamanha desgraça, quanto mais miséria tem mais urubu ameaça!"
5) Lembro que por algumas vezes a polícia tentou impedir que ocorresse o sarau Ratos Di Versos. Por que cultura incomoda tanto?
Cara, no Ratos Di Versos fazemos poesia na rua. Nem sempre foi assim: estivemos em muitos bares, dos quais fomos devidamente expulsos, depois de botarem repressão em nossas palavras, versos, atitudes. Um palavrão. Uma juke-box. Uma data cancelada. Um ataque pessoal. Então a repressão já está aí, no lugar aonde você estiver.
Fazer poesia na Lapa é um aprendizado constante: fica no Centro, todas as tribos culturais firmam pé por ali, muitos chegam de longe, é como dizem: "onde moro não tem nada". Então é na Lapa o refresco da periferia, passar uma noite ali na mais pura malandragem, garantia de diversão a noite toda - de manhã voltar pra casa feliz e seguro. É também um "salve" no bolso do mendigo, do cracudo, da prostituta, do travesti, e de qualquer elemento da cidade: de políticos a ladrões, todos vão ali. Por diversão ou por grana.
Algumas vezes temos de lidar com a polícia, suas ameaças brutais, e chegamos às vias de fato com o chamado Lapa Presente [de Grego] - um péssimo serviço a cultura na Lapa. Porque o cerco é geral, não só aos meliantes. Então não querem reuniões "esquisitas", não querem poesias nas ruas mais movimentadas da noite do Rio - já nos revistaram os fanzines, esgoelaram poetas, spray de pimenta nos olhos, bombas nos pés, puxaram o revólver. Sofremos a repressão direta, a última delas foi na virada 2014/15, desde então pensamos num modo de lidar com essa praga. Desde o histórico de praças e bares, desde a última expulsão do Ratos Di Versos, logo em 2015 mesmo, conquistamos uma pracinha para chamar de nossa: tem balancinho, trepa-trepa, gangorra, tem poesia - atualmente somos Rat-Felizes! :D
6) O que te inspira a criar?
Assistir o mundo, lido e vivido, futucá-lo como quem está atrás de namorada, estrebuchar com as injustiças, ou observar o belo, seja simples ou inconveniente, o inesperado - de qualquer jeito, é a poesia que vem pra mim. Mais fácil se doer, mais difícil se já existe uma beleza dada. A maior parte do que escrevo, sinceramente, é um lixo. Mas calmaê: o "brilho" é mesmo porra-lôca, só aparece de vez em nunca, e isso não é diferente do que ocorre em grandes poetas e escritores. Acho que dificulto as coisas. Sei lá. Tenho prática de escrita. Não acho que escrevo poesia boa, só por escrever bonito... Nem todo mundo curte bossa-nova.
7) Quando você escreve em algum momento pensa no receptor?
Sim. Tento dividir entre poemas escrito para populares, e outros, escritos livremente, e só por isso já possuem uma carga elevada de cultura. Sou formado em ciências sociais pela UERJ, se quiser falo grego pra desafiar outros letrados. Mas em geral busco ser simples, fácil, direto.
8) Há um debate frequente sobre a questão da descriminalização, regulamentação e legalização da maconha. Qual sua opinião sobre?
Tudo o que vier para descriminalizar é um bem à sociedade, ainda mais nesse Brasil varonil: favela num pode, camelô num pode, e quanto mais pobre e mais preto a coisa tende a proibição. Ao descriminalizar a maconha atacamos um excesso que ocorre no Brasil: a prisão arbitrária dos pobres. É de conhecimento público o índice de 60% da lotação das cadeias vir justamente de perigos menores, como portar umas buchas de maconha. Explico melhor: se você é pobre e mora em favela ou bairro degradado... você está em "área suspeita" de ser "alcova da malavita", se você é preto ou pardo e está desempregado então você é "típico", e se for pego com uma bobagem que é a maconha: fecha-se o cerco com a tal "formação de quadrilha". Não terá como se defender da súmula 70, na qual a voz do policial tem superioridade a do cidadão comum, e funciona bem quando vemos os tais "60%" moscando na gaiola: pobre, preto, favelado, gente de nossas grandes cidades. No campo talvez seja pior, talvez a bala resolva o que o martelo não cuida. Isso deságua na perseguição aos militantes aqui do Rio, que suportam o caso do sem-teto Rafael Braga, preso nas manifestação de 2013 com um pinhossol forjado em molotov - foi pra dar angústia no coração revolucionário. Foi pego andando na rua, na dele, sem o menor "senso de esquerda". Em 2015 conseguiu a semi-aberta, mas nesse 2016 adivinhe em qual caso caiu? Pois é... Fecho com o selfie da pixação que, embaixo da qual, lhe valeu duas semanas na solitária da prisão: “Você só olha da esquerda para a direita, o Estado te esmaga de cima para baixo”
9) Existe uma metodologia para criar?
Sim. Todos os métodos são válidos para desenvolver o que você já sabe: a poesia que vem desse lugar secreto e particular, essa já existe. Daí, se quiser fazer sonetos, sextilhas, alexandrinos, haicais... você precisa estudá-los como método de criação.
10) Próximos projetos.
Retomar o que iniciei em 2014: fazer mais performances e intervenções com linguagem específica do que em dança chamamos de "conceitual". Falando assim, parece vago, e a depender do que se faz: é mesmo. A ideia é lançar-me ao denso, porque o cotidiano é difícil também. Viver é difícil - viver é arte. Se pagarem por isso, tudo bem; se não... Voltamos ao operariado e fim de papo.
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