(Por Diego El Khouri)
Literatura pra mim "já foi glaucoma, hoje é cegueira. Já foi telescópio, microscópio e caleidoscópio, hoje é prato em que cuspo, vomito e choro."
Glauco Mattoso, paulistano nascido em 1951, é um marco zero na literatura mundial. Com recorde de mais de 3000 sonetos (escrito em menos de dez anos) , esse pós maldito (como prefere ser chamado) é um forte exemplo daqueles que conseguem juntar poesia e vida numa intensidade única. Aliás, essa idéia nunca pode dissociar. Filho da tragédia ele vem compondo compulsivamente, desesperadamente numa loucura sem tamanho. Vítima da cegueira aos 40 anos de idade, esse revoltado por condição existencial, volta ao poema clássico abandonando o verso livre dos primeiros anos de literatura. Mas com ele o soneto assume um caráter diferente. Usando de uma forma metrificada perfeitamente ele consegue subvertê-la levando o leitor a sensações únicas.
Podridão e lirismo. Amor e ódio. Visão e cegueira.
Sua poética é uma arma contra os seus traumas íntimos. Vítima dos outros garotos e por sofrer glaucoma (por isso seu apelido), portanto sendo então uma criança frágil, é violentado inúmeras vezes. Na juventude ingressa na literatura e em inúmeros casos sádicos. Já aos 40 anos de idade e cego por completo se deixa abusar novamente por crer ser apenas um bicho e não homem. A literatura foi o que o salvou...
"De dentro da minha cegueira, vejo que, para a poesia, a única tendência vital será o retorno às origens, ou seja, em vez de buscar a visualidade, recuperar a oralidade".
Tive o prazer de entrevista-lo e coloco aqui na íntegra sem cortes toda a entrevista.
Mantive a linguagem original do Glauco, pois por não aceitar a nova reforma da língua portuguesa ele adotou a antiga ortografia.
Aí está:
Aí está:
[1] Dentro de um quadro onde há tabus, preconceitos e a valorização
excessiva da higiene, em terra inculta o que é ser um "poeta sujo", ao
mesmo tempo clássico, conceitual e, para arrematar, cego, homossexual,
podólatra e sadomasoquista?
GM: A sujeira e a podridão sempre fizeram parte da maldicção litteraria.
Sade era muito coprophilo, Bocage era escatologico, Genet tambem. A
esthetica punk accrescentou mais uma pitadinha de nojeira nessa porcaria
toda. Commigo a coisa foi cumulativa: herdei o patrimonio fescennino dos
goliardos, dos maldictos, e passei pelas phases hippie e punk, com toda
a antihygiene inclusa. Mas, sendo cego, fetichista, sadomasochista e
veado, a coisa se aggrava. Eu diria que, sendo o Brasil um paiz bem
viralata, quem quizer assumir o rotulo de "sujo" tem mesmo que estar um
pouco acima da media... Mas ser um poeta sujo não é apenas chafurdar na
merda: é saber jogal-a no ventilador, saber fazer della boas tortas para
atirar na cara dos politicamente correctos.
[2] Você é realmente o que diz em suas poesias ou é apenas uma alienação
para fugir da dor vivente?
GM: As duas coisas, como ja dizia Pessoa. Sou personagem de mim mesmo e
exaggero, como todo poeta visceral, mas a contradicção tambem faz parte
da lenda dum maldicto. Então, tenho meu lado careta e accommodado.
[3] Como já dizia o profeta do caos Timothy Leary, "a marginalidade é
formada por aqueles que estão 'out' - aqueles que não tem acesso ao
poder estabelecido involuntariamente por miséria, ou voluntariamente por
escolha estética religiosa". Vivendo em um país de terceiro mundo, sendo
portanto um marginal por condição, cinéfilo inveterado e amante de
quadrinhos, como conceber ser um cego em meio a esse quadro?
GM: De facto, ser um outsider no Terceiro Mundo é algo bem mais
underground que ser underdog no Primeiro Mundo. Mas meu caso não é
questão de mera opção esthetica, é fatalidade mesmo. Eu ja nasci
enxergando mal e ja sabia que perderia a visão. Foi uma tortura lenta,
que me ensinou a ser masochista para compensar e a fazer poesia para
desabafar a revolta. Hoje, cada pau que eu chupo, cada pé que eu lambo,
me torna mais consciente de que o mundo foi feito para os que podem se
aproveitar dos que estão por baixo. Christo dava a outra face à
bofetada. Eu, que não sou sancto, offereço a bocca ao proximo pau e a
lingua à proxima sola. Dahi tiro meus themas mais authenticos.
[4] Qual a maior diferença do poeta antes e depois da cegueira?
GM: A principal differença foi que antes eu era anarchista e iconoclasta
meio a serio, meio de brincadeira. Hoje sou um palhaço a serio,
consciente de que minha missão é divertir meus leitores emquanto eu
choro.
[5] Como o mundo acadêmico vê hoje sua obra? Há alguma repulsa devido
aos termos contundentes que utiliza?
GM: Repulsa sempre ha, tanto da parte da critica quanto dos editores ou
leitores, mas o circulo dos que reconhecem meu trabalho é sufficiente
para me dar respaldo. Sou objecto de theses e cursos, aqui e no
exterior. Um caso pathologico, como Augusto dos Anjos ou Giuseppe Belli.
Mas tem hora que fico desanimado com tanta indifferença (ou boycotte) da
midia e do meio editorial, ja que meu caso não é apenas "mais um" de
maldicção litteraria. Si eu fizesse tudo que faço, mais de trez mil
sonetos em menos de dez annos, num computador para cegos, fora os
romances, contos, artigos e columnas na imprensa, mas fosse nascido na
Europa ou nos States, com certeza ja teria apparecido algum Sartre para
me "canonizar", algum editor para bancar minha obra completa em
papel-biblia, algum cineasta para filmar minha vida, algum dramaturgo
para me transformar em peça theatral, algum director musical para me
thematizar na Broadway. Mas é assim mesmo, ser fodido no Terceiro Mundo
é mais heroico por causa desses aggravantes.
[6] Quais são suas referências literárias, o que mais te chocou e o quenão sai da sua cabeça em questão de arte?
GM: Dos referenciaes ja fallei muito, são aquelles maldictos de sempre,
de Villon a Genet, passando por Sade e Masoch, Bocage e Gregorio,
Aretino e Belli, mas o que não me sae da memoria visual é a scena de
"Laranja mechanica" em que o perdedor tem que lamber a sola de quem o
pune. Commigo foi assim desde menino, sendo eu victima dos moleques mais
saudaveis, por isso a scena tem esse gostinho especial para mim, que sou
perdedor assumido, o "loser" que só pode se vingar compondo sonetos.
[7] Você pensa como Roberto Piva, "a poesia sempre será uma arte
minoritária"?
GM: Sim, sou amigo do Piva e discordo delle em muitos pontos, mas elle
está certo. Poesia é para um pequeno circulo de appreciadores meio
pirados, meio sonhadores, meio illuminados.
[8] Rimbaud dizia que "o poeta é mesmo ladrão de fogo". Octavio Paz já
acreditava que "a poesia é a subversão do corpo". Breton afirmava que
"poesia é a orgia mais fascinante ao alcance do homem". Álvares de
Azevedo dizia que "o fim da poesia é o belo" e Baudelaire que "a arte é
prostituição". Pra você o que é poesia?
GM: Ja defini a poesia como "uma metralhadora na mão dum palhaço". Pode
ser inoffensiva, mas nada nem ninguem está blindado contra ella,
principalmente si o "blind" é o proprio poeta... (risos)
[9] o que é a Morte pra você? Existe alguma salvação para a humanidade
ou cada dia mais declinará em sua podridão hipócrita e torturante?
GM: Tem que existir vida após a morte, claro. Sinão, como poderemos
cobrar pessoalmente de Deus, ou do Diabo (o que dá na mesma) tudo
aquillo que elle nos deve? Si elle irá pagar, ou si ainda seremos mais
taxados, ahi ja é outra historia...
[10] Por fim ( tudo merece um fim, até essa entrevista) o que você diria
para aqueles aspirantes a poetas que desejam publicar um livro mas não
sabem e não conhecem os meios para tal?
GM: Que façam como eu ou você, publiquem um zine. Comecei assim,
independente, e a persistencia sommada à qualidade mais a quantidade
mais o passar dos annos, tudo juncto, consolidará uma obra. O importante
é que o conteudo seja fiel à biographia do auctor. De phantasia está a
Disneylandia cheia. Outra coisa é não querer ser genio precoce, pois de
Rimbauds frustrados estão os presidios e manicomios cheios. Afinal, é
melhor ser bandido e louco do lado de fora, né mesmo? Ja basta a prisão
da cegueira, no meu caso, que aliaz é perpetua... (risos)
[outubro/2009]
///
excessiva da higiene, em terra inculta o que é ser um "poeta sujo", ao
mesmo tempo clássico, conceitual e, para arrematar, cego, homossexual,
podólatra e sadomasoquista?
GM: A sujeira e a podridão sempre fizeram parte da maldicção litteraria.
Sade era muito coprophilo, Bocage era escatologico, Genet tambem. A
esthetica punk accrescentou mais uma pitadinha de nojeira nessa porcaria
toda. Commigo a coisa foi cumulativa: herdei o patrimonio fescennino dos
goliardos, dos maldictos, e passei pelas phases hippie e punk, com toda
a antihygiene inclusa. Mas, sendo cego, fetichista, sadomasochista e
veado, a coisa se aggrava. Eu diria que, sendo o Brasil um paiz bem
viralata, quem quizer assumir o rotulo de "sujo" tem mesmo que estar um
pouco acima da media... Mas ser um poeta sujo não é apenas chafurdar na
merda: é saber jogal-a no ventilador, saber fazer della boas tortas para
atirar na cara dos politicamente correctos.
[2] Você é realmente o que diz em suas poesias ou é apenas uma alienação
para fugir da dor vivente?
GM: As duas coisas, como ja dizia Pessoa. Sou personagem de mim mesmo e
exaggero, como todo poeta visceral, mas a contradicção tambem faz parte
da lenda dum maldicto. Então, tenho meu lado careta e accommodado.
[3] Como já dizia o profeta do caos Timothy Leary, "a marginalidade é
formada por aqueles que estão 'out' - aqueles que não tem acesso ao
poder estabelecido involuntariamente por miséria, ou voluntariamente por
escolha estética religiosa". Vivendo em um país de terceiro mundo, sendo
portanto um marginal por condição, cinéfilo inveterado e amante de
quadrinhos, como conceber ser um cego em meio a esse quadro?
GM: De facto, ser um outsider no Terceiro Mundo é algo bem mais
underground que ser underdog no Primeiro Mundo. Mas meu caso não é
questão de mera opção esthetica, é fatalidade mesmo. Eu ja nasci
enxergando mal e ja sabia que perderia a visão. Foi uma tortura lenta,
que me ensinou a ser masochista para compensar e a fazer poesia para
desabafar a revolta. Hoje, cada pau que eu chupo, cada pé que eu lambo,
me torna mais consciente de que o mundo foi feito para os que podem se
aproveitar dos que estão por baixo. Christo dava a outra face à
bofetada. Eu, que não sou sancto, offereço a bocca ao proximo pau e a
lingua à proxima sola. Dahi tiro meus themas mais authenticos.
[4] Qual a maior diferença do poeta antes e depois da cegueira?
GM: A principal differença foi que antes eu era anarchista e iconoclasta
meio a serio, meio de brincadeira. Hoje sou um palhaço a serio,
consciente de que minha missão é divertir meus leitores emquanto eu
choro.
[5] Como o mundo acadêmico vê hoje sua obra? Há alguma repulsa devido
aos termos contundentes que utiliza?
GM: Repulsa sempre ha, tanto da parte da critica quanto dos editores ou
leitores, mas o circulo dos que reconhecem meu trabalho é sufficiente
para me dar respaldo. Sou objecto de theses e cursos, aqui e no
exterior. Um caso pathologico, como Augusto dos Anjos ou Giuseppe Belli.
Mas tem hora que fico desanimado com tanta indifferença (ou boycotte) da
midia e do meio editorial, ja que meu caso não é apenas "mais um" de
maldicção litteraria. Si eu fizesse tudo que faço, mais de trez mil
sonetos em menos de dez annos, num computador para cegos, fora os
romances, contos, artigos e columnas na imprensa, mas fosse nascido na
Europa ou nos States, com certeza ja teria apparecido algum Sartre para
me "canonizar", algum editor para bancar minha obra completa em
papel-biblia, algum cineasta para filmar minha vida, algum dramaturgo
para me transformar em peça theatral, algum director musical para me
thematizar na Broadway. Mas é assim mesmo, ser fodido no Terceiro Mundo
é mais heroico por causa desses aggravantes.
[6] Quais são suas referências literárias, o que mais te chocou e o quenão sai da sua cabeça em questão de arte?
GM: Dos referenciaes ja fallei muito, são aquelles maldictos de sempre,
de Villon a Genet, passando por Sade e Masoch, Bocage e Gregorio,
Aretino e Belli, mas o que não me sae da memoria visual é a scena de
"Laranja mechanica" em que o perdedor tem que lamber a sola de quem o
pune. Commigo foi assim desde menino, sendo eu victima dos moleques mais
saudaveis, por isso a scena tem esse gostinho especial para mim, que sou
perdedor assumido, o "loser" que só pode se vingar compondo sonetos.
[7] Você pensa como Roberto Piva, "a poesia sempre será uma arte
minoritária"?
GM: Sim, sou amigo do Piva e discordo delle em muitos pontos, mas elle
está certo. Poesia é para um pequeno circulo de appreciadores meio
pirados, meio sonhadores, meio illuminados.
[8] Rimbaud dizia que "o poeta é mesmo ladrão de fogo". Octavio Paz já
acreditava que "a poesia é a subversão do corpo". Breton afirmava que
"poesia é a orgia mais fascinante ao alcance do homem". Álvares de
Azevedo dizia que "o fim da poesia é o belo" e Baudelaire que "a arte é
prostituição". Pra você o que é poesia?
GM: Ja defini a poesia como "uma metralhadora na mão dum palhaço". Pode
ser inoffensiva, mas nada nem ninguem está blindado contra ella,
principalmente si o "blind" é o proprio poeta... (risos)
[9] o que é a Morte pra você? Existe alguma salvação para a humanidade
ou cada dia mais declinará em sua podridão hipócrita e torturante?
GM: Tem que existir vida após a morte, claro. Sinão, como poderemos
cobrar pessoalmente de Deus, ou do Diabo (o que dá na mesma) tudo
aquillo que elle nos deve? Si elle irá pagar, ou si ainda seremos mais
taxados, ahi ja é outra historia...
[10] Por fim ( tudo merece um fim, até essa entrevista) o que você diria
para aqueles aspirantes a poetas que desejam publicar um livro mas não
sabem e não conhecem os meios para tal?
GM: Que façam como eu ou você, publiquem um zine. Comecei assim,
independente, e a persistencia sommada à qualidade mais a quantidade
mais o passar dos annos, tudo juncto, consolidará uma obra. O importante
é que o conteudo seja fiel à biographia do auctor. De phantasia está a
Disneylandia cheia. Outra coisa é não querer ser genio precoce, pois de
Rimbauds frustrados estão os presidios e manicomios cheios. Afinal, é
melhor ser bandido e louco do lado de fora, né mesmo? Ja basta a prisão
da cegueira, no meu caso, que aliaz é perpetua... (risos)
[outubro/2009]
///
Reação:
ResponderExcluirA poesia é uma faca de dois gumes.
Sonhos bonitos e loucuras.
Parcial ou totalmente,
uma coisa perigosa.
Tem ressonância,
muito aceita se considerem
algo razoável.
E invulnerável.
Tem o direito
de todas as idéias.
Cecília Fidelli.
Você não só pode como deve discordar,
e dizer que não é bem assim...
Beijo pro Glauco.